O rapaz para sua bicicleta em frente ao meu prédio. Ela me faz lembrar da que eu tinha na infância, usada para as entregas de mercadorias feitas pelo meu irmão. Foi ali, diante do salão comercial do meu pai, em Glória, que aprendi a manter uma bicicleta em pé — a dominá-la. Depois vinham as manchas provocadas pelas quedas, mas eu mantinha o sorriso de contentamento por ter vencido a máquina.
A bicicleta do entregador de hoje tem, na parte dianteira, duas espécies de grandes sacos quadrados para o transporte das cargas. Parado agora, o homem, com a ajuda de uma tela, retira dali alguns pequenos pacotes. Quantos ele entrega por dia? Uma quantidade imensa! Ele trabalha para uma das empresas subcontratadas por um gigante do e-commerce, que provavelmente não paga o salário oficial, obrigando-o a trabalhar mais horas do que o permitido pelas leis trabalhistas. Mas que opção ele tem neste mundo globalizado?
A culpa é nossa — de nós que compramos, seduzidos pelo marketing e pelos preços baixos das plataformas chinesas, que contam com isenções fiscais para encomendas de pequeno valor e subsídios do governo. É a lógica do capitalismo predatório: eliminar os concorrentes para, depois, subir os preços.
Aqui na França, os setores mais afetados são os de moda e calçados. Estima-se que, em 2024, aproximadamente 1.600 lojas — a maioria nos centros urbanos — fecharam as portas. Marcas importantes desses setores encerraram suas atividades ou enfrentam graves dificuldades.
E o Estado, diante disso, também se fragiliza. Sem arrecadação de impostos e taxas para atender às necessidades da população, torna-se inoperante. Surge, entre outros danos, um novo mundo, marcado por trabalhadores precários e pelo aumento da poluição causada pelo transporte de produtos vindos de tão longe.
É urgente tomar medidas conjuntas — é o que a Europa tenta fazer. Mas, mesmo diante de preços mais altos, muitos consumidores preferem continuar comprando pelas plataformas. Domínio dos preços baixos? Falta de cidadania? Talvez. Mas é difícil competir com máquinas tão poderosas quanto a chinesa — ou a do próprio capitalismo.
Estamos morrendo aos poucos. Quando abriremos os olhos para a guerra que está em curso? Estamos longe das trocas culturais genuínas entre os países — como nos eventos que celebram, por exemplo, o ano do Brasil na França.
Quando despertaremos? Será tarde demais? Estamos matando os produtores locais, que já não conseguem pagar salários dignos aos seus trabalhadores diante da concorrência, até mesmo dentro da própria Comunidade Econômica Europeia.
Resistência! Não precisamos de tantas coisas que compramos sem necessidade. Os recursos do planeta não são infinitos — e estamos acabando com eles. Felizmente, muitos por aqui têm optado por produtos de segunda mão. Produtos que deveriam ser feitos para durar — ao contrário das lâmpadas e tantos outros itens programados para ter vida curta, só para que o comércio possa continuar vendendo, vendendo, vendendo.
Mazé Torquato Chotil – Jornalista e autora. Doutora (Paris VIII) e pós-doutora (EHESS), nasceu em Glória de Dourados-MS, morou em Osasco-SP antes de chegar em Paris em 1985. Agora vive entre Paris, São Paulo e o Mato Grosso do Sul. Tem 14 livros publicados (cinco em francês). Fazem parte deles: Na sombra do ipê e No Crepúsculo da vida (Patuá); Lembranças do sítio / Mon enfance dans le Mato Grosso; Lembranças da vila; Nascentes vivas para os povos Guarani, Kaiowá e Terenas; Maria d’Apparecida negroluminosa voz; e Na rota de traficantes de obras de arte.
Em Paris, trabalha na divulgação da cultura brasileira, sobretudo a literária. Foi editora da 00h00 (catálogo lusófono) e é fundadora da UEELP – União Européia de escritores de língua Portuguesa. Escreveu – e escreve – para a imprensa brasileira e sites europeus.