Depois de um dia puxado de campanha em Aquidauana, com agenda noturna em Campo Grande e outra marcada para a primeira hora da manhã seguinte em Dourados — onde o prefeito José Cerveira já nos aguardava — pegamos a BR-163, todos em petição de miséria. O volante, naquele dia, estava nas mãos do meu primo Hamilton Dauzacker da Silva, testemunha de um pedido inusitado que fiz. Não como assessor de campanha, mas como cidadão e amigo do candidato a governador José Elias Moreira — que conhecia cada buraco, curva e ponto de estrangulamento dessa rodovia assassina, especialmente em tempos de safra.
Naquela noite, Zé Elias não estava sonolento, como de costume. No rádio, a notícia da queda do Boeing da VASP, em Fortaleza, que matou os 137 ocupantes, entre eles o empresário Edson Queiroz, do Grupo Verdes Mares, fez a viagem silenciar. Foi então que quebrei o silêncio:
— Me promete que, se eleito, vai obrigar o governo federal a duplicar esse trecho?
Zé Elias nem pestanejou:
— E você tem alguma dúvida disso?
Não tinha. Mas ele perdeu a eleição. E a BR-163 continuou matando — não só de acidente, como em 1987, o querido Júlio Marques de Almeida, assessor e amigo íntimo de Zé Elias. Depois da privatização, matando também de raiva e indignação. Com a CCR, a morte ganhou pedágio. E, agora, com o novo nome, MOTIVA, ganha marketing.
A CCR prometeu duplicação. Entregou filas nos infindáveis “pare e siga“, pelo tanto de buraco que conserta, e tarifas extorsivas. Duplicou foi o lucro — e triplicou a paciência de quem sobreviveu à ilusão. O mais revoltante é que esse escárnio só se perpetua aqui. Porque em Mato Grosso, a mesma BR-163 está duplicada. E em trechos onde o milho nem sonha em virar etanol. Praga de cuiabano ou, ainda, efeitos do tiro que saiu pela culatra com a divisão do estado, como sempre escrevi aqui?
Ontem, o Ministério dos Transportes proporcionou um espetáculo de cinismo. Em São Paulo, num leilão de fachada com nome pomposo — “otimização rodoviária” — a única proposta veio dela mesma: da velha CCR disfarçada de MOTIVA. A sessão durou menos de 10 minutos. Um golpe mais ágil que os acidentes que ceifam vidas nesse asfalto de promessas rasgadas.
Renan Filho, o ministro do Transportes, cuja herança política dispensa apresentações, discursou como se inaugurasse um novo tempo. Falou em fresas, recapeamento e planos. Faltou só dizer que a culpa era do clima — ou de quem ousou acreditar.
A nova concessão vai até 2054. Repito: dois mil e cinquenta e quatro. Até lá, talvez eu já esteja dando piruetas no sepulcro, com cem anos e sem chance de cruzar a 163 — pelo menos não na boleia.
Mudaram o nome para MOTIVA. Como se isso curasse as mágoas de uma década de enganação. Como se o marketing substituísse a duplicação. Como se a inteligência do povo fosse um item facultativo no contrato.
Segundo os dados técnicos do próprio contrato:
- Apenas 203 km serão duplicados (menos de 1/4 do prometido).
- A tarifa média será de R$ 7,52 a cada 100 km.
- Os investimentos prometem R$ 17 bilhões ao longo de 29 anos.
- E, claro, a promessa de geração de mais de 134 mil empregos — o bordão de sempre.
Enquanto isso, dos 845 km assumidos em 2014, só 150 km foram efetivamente duplicados. A empresa descumpriu o contrato, driblou a ANTT, fugiu da redução de tarifas com liminar judicial, fingiu prejuízo por anos e agora — veja só — lucra R$ 21 milhões no primeiro trimestre de 2025.
Senhores e senhoras, esse contrato não é uma concessão. É um presente. Uma carta de alforria para a ineficiência e o cinismo empresarial. E, por que não dizer, para a covardia política. Com exceção de vozes isoladas como a do deputado Júnior Mochi, a maioria se calou ou falou tarde demais.
Fica a esperança — talvez para meus netos — de que, um dia, o Mato Grosso do Sul seja tratado como Estado e não como território de espoliação.
Se até aqui faltou motivação da classe política, a partir de agora a Motiva tem nome, CNPJ e 29 anos de estrada para continuar nos ando a perna.